terça-feira, 10 de março de 2009

"As Laranjas do Burgo"

Em determinada área do antigo concelho de Vila Meã, actual freguesia do Burgo, não há muitas laranjeiras e, as poucas que existem dão laranjas azedas. Segundo a tradição, o facto deve-se a um castigo dado por Dona Mafalda, e que nos chegou até hoje sob a forma de lenda.
A rapaziada de qualquer lugar e de todos os tempos, sempre gostou de brincar às guerras. Tão aproximadas do real quanto possível, estas não dispensam um bom confronto de granadas. Mas, como é natural, no lugar daquelas, torrões de terra, maçãs ou laranjas (consoante a época do ano a que se dá a contenda), são as coisas que melhor as assemelham.
Na zona do Burgo, a época preferida era a das laranjas. «No dia de S. Sebastião “O Mártir”, havia-as especiais e sempre esperadas, “pelo S. Sebastião laranja na mão”».
Das laranjas não corria boa fama, pois dizia-se "laranjas em Janeiro, dão que fazer ao coveiro", ou “manhã de oiro, de tarde prata e à noite mata”. Por isso, as laranjas ficavam no chão ou nas laranjeiras, à ordem da garotada, para lhes servirem de granadas, armas ou balas, nas tais guerras a que por brincadeira se dedicavam.
Na véspera do Mártir, São Sebastião, faziam-se provisões de tais laranjas, sendo consideradas melhores as rachadas ou as podres, pois ao acertarem em alguém deixavam sinal de si. Deitavam por terra o atingido, que não conseguia esconder que o foi… Morto, fora de jogo!
Em qualquer batalha, mesmo a brincar, como era o caso, eram necessários dois grupos de contendores, para se atacarem mutuamente. Para começar bastava que o mais atrevido atirasse, à sucapa, a primeira laranja ao parceiro, para todos correrem à procura de trincheiras ou barricadas, donde pudessem atirar laranjas sem serem atingidos por outros.
Aconteceu que, em certo ano pelo dia de S. Sebastião, no Mosteiro de Arouca, era aguardada a chegada do visitador-mor Dom Lourenço de Ataíde, com a sua corte e criadagem de serviço e apoio.
A aguardar essa visita, em frente à porta da Igreja do Mosteiro, estava o Juiz de Fora com os meirinhos, o padre-capelão, os confessores, o cirurgião, o tabelião de prazos, o Juiz da Irmandade das Almas, alguns irmãos de opa roxa e romeira branca, bem como muito povo.
Dentro do Mosteiro havia uma grande expectativa: algumas freiras espreitavam pelas grades quando uma saiu do arraial gritando: “Lá vem eles, lá vem eles…”. E, de facto, lá ao fundo do caminho, revelava-se uma onda negra com algumas manchas de vermelho vivo, em movimento… Depressa a Irmã sineira correu à torre e lançou para o ar um repique festivo de aleluia. Lá fora, o arraial tomava posição e formava alas. Cada vez mais próximo o grupo, destinguiam-se cinco componentes eclesiásticos, incluindo o venerando visitador-mor, montados em ricos cavalos; outros três, eram do pessoal de serviço fardado – barretina, casaca vermelha, calção azul, meia branca e sapatos, com três azémolas com carga – arcas e capas.
O séquito, à distância, era imponente, mas quando estacou em frente ao Mosteiro, mais parecia restos de um corpo de estado-maior, destroçado pela guerra, à procura de asilo e esconderijo.
O visitador-mor mais parecia um lázaro – a cara inchada, reluzente de liquido viscoso, os olhos congestionados e lacrimosos, poeira e sujidade de lama na vestimenta. As fardas coloridas dos serviçais traziam grandes manchas de humidade, grumos e lama. Nos outros sem se repara, pois que os olhares incidiam apenas sobre o pobre do visitador-mor. O povo, logo compreendeu o que se tinha passado e com as mãos escondidas, esboçavam sorrisos suspeitos.
Os visitadores entraram na igreja onde os aguardavam a mui Reverenda Dona Abadessa e todo o Mosteiro.
"Como Vossa Excelência Reverendíssima vem!”, atalhou a Soror Mafalda. Ao que respondeu o visitador-mor: ao passar pelo Burgo de Vila Meã, os criados que vinham atrás foram atacados à laranja, não se sabe por quem e quando eu recuei para os proteger com a minha autoridade, fui atingido na cara por laranjas podres, atiradas com força ao mesmo tempo que ouvia uma voz de menino: “Morto, fora de jogo!”
Ao ouvir a história e ver o estado em que eles vinham, Dona Mafalda, mandou esconjurar as laranjas do Burgo com a seguinte frase: “Eu vos esconjuro laranjas do Burgo”. A partir de então nunca mais as poucas laranjeiras existentes naquela localidade deram boas laranjas!
.
(Versão ligeiramente adaptada de um trabalho realizado pelos alunos da Escola EB-2.3 de Arouca. Há, pelos menos, mais duas versões. No entanto, pareceu-me bem acolher esta.) in Meu Rumo

Sem comentários:

Enviar um comentário